Hambúrguer de picanha sem picanha: brasileiro é fácil de ser enganado?
Para especialistas, legislação é boa, mas casos trazem discussão de atuação de empresas no limite da legalidade e uso de estratégias equivocadas
Nos dois casos, a resposta foi semelhante. Na última sexta-feira (29), o “Méqui” anunciou a retirada do cardápio do lanche controverso, incrementado com molho sabor picanha. A promessa é de que ele voltará irretocável, mas renomeado. O Burger King confirmou que o preparo do Whopper Costela leva, na verdade, paleta suína e tem aroma natural de costela. “Por isso, a gente vem a público dizer que sentimos muito pelo ocorrido e anunciar a troca imediata do nome do sanduíche para Whooper Paleta Suína”, disse a companhia, em nota.
Os episódios suscitaram discussões de diferentes vieses. O Departamento Estadual de Proteção e Defesa do Consumidor (Procon) de São Paulo notificou as marcas. Na esfera federal, o Ministério da Justiça pediu explicações, e, nesta terça-feira (3), a Comissão de Controle e Defesa do Consumidor (CTFC) do Senado aprovou requerimento para debater os casos de “hambúrguer fake”.
“Anunciar um produto de hambúrguer com picanha e costela e falar que nesses hambúrgueres só têm o cheiro da picanha ou da costela é brincadeira com a população brasileira. Não podemos aceitar isso. Tem que ser esclarecido, tem que ser colocado em pratos limpos. Aqueles que induziram a um equívoco dessa natureza precisam ser responsabilizados”, disse o autor do requerimento, o senador Nelsinho Trad (PSD-MS).
O desrespeito ao Código de Defesa do Consumidor (CDC) é dado como certo. “É claramente um caso de publicidade enganosa, já que induz o consumidor em erro a respeito das características do produto. Importante lembrar ainda que fazer publicidade enganosa é infração penal punível com pena de detenção de três meses a um ano e multa”, afirmou nas redes sociais a coordenadora do Procon-PR, Claudia Silvano.
Mas o que justificaria, afinal, esse comportamento “desafiador” de empresas de tão grande porte no mercado brasileiro? O questionamento não passou despercebido entre os parlamentares que costuram a audiência no Congresso. “Será que em outro país ocorreria isso?”, levantou o senador Eduardo Girão (Podemos-CE).
A advogada e colunista do Plural Leticia Beltrami, especializada em relações de consumo, observa que brechas da própria legislação dão às empresas a possibilidade de atuarem sempre muito perto do limite legal estabelecido. Isso por si só já é um impasse.
Embora as normas sejam consolidadas e não deixem dúvidas quanto às regras de veiculação de propagandas e também quanto às consequências lesivas das práticas abusivas, o propósito interno das marcas, quando se manifestam para atingir o grande público, não deve ser desconsiderado como parte do processo.
“As empresas trabalham no limite da legalidade, no limite da informação, estão trazendo o mínimo ao consumidor e tentando maximizar essa lucratividade”, observa a advogada. “Vejo até como uma postura de ‘jeitinho brasileiro’, cultural mesmo, de levar isso ao extremo. Então, onde as empresas veem uma brecha, no limite da legalidade para se beneficiarem, elas atuam.”
A especialista lembra que, embora os casos McDonald’s e Burger King tenham repercutido de tal maneira a obrigar um posicionamento imediato das redes, a propaganda enganosa está praticamente disseminada na rotina brasileira.
Por aqui, esta não é a primeira vez que o McDonald’s é questionado pelos consumidores. Em caso mais recente, em 2017, a uma parceria com a empresa de chocolates Kopenhagen deu o que falar depois de uma foto viral registrar o uso de marshmallow de outra marca na preparação de sobremesas do cardápio colaborativo.
“No dia a dia tem muita coisa que você consome e não sabe exatamente do que se trata. Até mesmo na composição de um produto estético. Não necessariamente você sabe o que tem ali, mas segue consumindo, e o produto segue sem transparência. Isso vai acontecendo até a gente se deparar com situações absurdas como essa, que daí ganha foco”, acrescenta.
Estratégia, errada, de marketing
Na nota encaminhada para esclarecer o descompasso entre a publicidade e a composição verdadeira do hambúrguer comercializado, o McDonald’s pediu desculpas “se o nome escolhido gerou dúvidas”, mas não assumiu uma possível indução dos consumidores.
“Esclarecemos que a plataforma recém-lançada denominada ‘Novos McPicanha’ teve esse nome justamente para proporcionar uma nova experiência ao consumidor com o exclusivo molho sabor picanha, uma nova apresentação e um hambúrguer diferente em composição e em tamanho (100% carne bovina, produzida com um blend de cortes selecionados e no maior tamanho oferecido pela rede atualmente)”, defendeu a companhia, que tem sede no estado de Illinois, nos Estados Unidos.
O Burger King, por sua vez, afirmou ter anunciado nas comunicações que o sanduíche leva paleta suína e tem sabor de costela. “Mas a reação das pessoas é um recado bem claro. Hora de ouvir, aceitar e agir. Sem meias palavras, sem gracinha, sem relativizar o problema”, disse a resposta ao público da marca.
O advogado e professor universitário Frederico Glitz, mestre e doutor em Direito pela UFPR, observa que, em ambos os casos, o foco é a estratégia de publicidade errada e não, necessariamente, a intenção de prejudicar o comprador.
“Não me parece haver uma intenção deliberada de prejudicar o consumidor, e sim, talvez, uma estratégia que tenha sido, do ponto de vista jurídico, equivocada. Na publicidade, o excesso de informação ou informações muito complexas acabam afugentando o consumidor, e daí o apelo normalmente a exageros ou a características que sejam destacadas para atrair aquele consumo”, coloca o docente.
Glitz, que destaca a visibilidade internacional da legislação de defesa ao consumidor no Brasil, também defende a precisão do CDC quanto à clareza da definição e das consequências da propaganda enganosa no âmbito jurídico e administrativo – este relacionando diretamente à atuação dos Procons. No entanto, ao invés de brecha na legislação, ele acredita que o que se configura em episódios como esses é o conceito “mais aberto” de cada uma das normas, exigindo, por exemplo, interpretações isoladas de cada caso.
“A questão vai ser toda como o consumidor vai perceber essa comunicação. Você tem, por exemplo, o próprio produto diet percebido como algo para emagrecimento. No entanto, o consumidor tem que entender que esse elemento não é suficiente para dar todas as informações do produto e, por isso, ele precisa consultar a embalagem, e no verso dela vai ter a tabela nutricional. De mesma forma, esse sanduíche teria na tabela nutricional a informação dos componentes, e ali ele deveria perceber, pelo menos essa é a legislação, de que aquele não se tratava de um produto contendo a carne A ou B.”
Com a polêmica em curso, Burger King e McDonald’s foram notificados pelo Procon de São Paulo a apresentarem a tabela nutricional dos sanduíches e disponibilizarem documentos que comprovem os testes de qualidade e demonstrem o processo de manipulação, acondicionamento e tempo indicado para consumo. A medida, avalia a advogada, Leticia Beltrami, vai ao encontro do que exigem as regras legais e retoma exigências feitas em outros casos polêmicos envolvendo a composição de produtos alimentícios.
“E é importante lembrar que o Código de Defesa do Consumidor determina que esse produto não só tenha de ser entregue como o especificado, mas também tem que dar a entender quando esse produto traz risco para a saúde”, diz a especialista.
Direitos reclamados
Glitz afirma que, em casos de propaganda enganosa, o consumidor pode buscar meios de reparação.
Administrativamente, o caminho são os Procons estaduais. Existe ainda a possibilidade de um processo criminal e cível, porém é importante que o consumidor esteja ciente que, nessas esferas, para casos mais isolados, o caminho é mais árduo.
“De modo geral, como são valores muito pequenos, acabam não sendo atrativos no sentido de que, eventualmente, vai se dispender muito mais tempo e energia para se buscar uma indenização, uma devolução dos valores pagos. Nesse caso, normalmente, se opta por soluções coletivas, então desde uma punição numa ação civil pública ou, por exemplo, uma suspensão junto ao Conar [Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária] para suspensão da atividade publicitária”.
Na audiência pública que vem sendo organizada pelo Senado, o Conar e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) estarão entre os convidados.