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O inferno são os outros: seguros internacionais, Direito Internacional Privado e a restrição à aplicação do Direito contratual estrangeiro

Por Frederico Glitz

Publicado em 19/12/2024

Quando abordamos a internacionalidade de um contrato, é usual que primeiro nos detenhamos na identificação do Direito material que o regerá. Nada mais natural em se tratando de um negócio jurídico que, por definição, atrai a incidência, concomitante, de mais de um sistema jurídico. É para resolver este ‘conflito de leis’ que utilizamos as ferramentas de Direito Internacional Privado (DIPRI).

Qualquer docente da matéria, neste ponto, abre alguns parênteses para seus alunos: justificamos a internacionalidade, apesar de as normas conflituais serem – ordinariamente – nacionais; explicamos o ‘privado’, apesar de o DIPRI esgueirar-se por temas que fogem desta antiquada classificação e defendemos tratar-se de Direito (com maiúscula, ciência autônoma) apesar de muitos relegarem-no a simples metodologia de aplicação da norma. Aparentemente, este esforço é, ainda e infelizmente, atual.

Gostaria, então, de tentar convencer o distinto leitor que precisamos conversar sobre o Direito Internacional Privado. Para fazê-lo valho-me da hipótese em que o Direito estrangeiro é aplicado por juiz nacional para solucionar dúvida contratual. Prometo ser breve e não perder sua atenção nos meandros do tema[1].

Para aquele que é não familiarizado com o tema, é importante ressaltar que – internacionalmente – se reconhece ao contratante uma liberdade adicional (além daquela de escolher seu parceiro, o objeto e a forma): a de escolha do regime jurídico. Assim, em contratos internacionais, não seria estranho que os próprios contratantes definissem o regime jurídico sob o qual realizam seu consenso, elegendo-o para a regência do contrato. Note que utilizei o futuro do pretérito para conjugar o verbo “ser”. Isso porque esta noção não criou muitas raízes no Direito brasileiro. Explico.

Sem voltarmos muito no tempo, lembro o leitor que o Código Civil brasileiro que entrou em 1917 previa uma regra muito simples que tornava válida – em negócios internacionais e salvo algumas exceções – uma cláusula que dispusesse sobre o Direito de regência das obrigações negociais[2]. Este estado de coisa, contudo, não sobreviveu os arroubos do Estado novo. Eis, então, que dentre tantas liberdades, o brasileiro também foi privado daquela, já que o Decreto-lei n° 4.657/1942 passou a impor uma forma de determinação do Direito aplicável, excluindo a escolha[3]. Este era, é claro, um momento anterior a efetiva internacionalização da economia brasileira. Contratos internacionais, então, eram tema de escassa preocupação doutrinária e judicial.

Ao final do ano de 2024 o arcabouço jurídico geral permanece, majoritariamente, o mesmo. Apesar de o Brasil, sua economia e os brasileiros terem se transformado durante o longo século XX, nossa legislação não se alterou. Não se surpreenda, portanto, leitor se ainda forem invocadas regras do século passado para reger seu contrato internacional. Ainda, é verdade, o Decreto-lei ganhou um lifting e passou a ter outro apelido: LINDB.

Durante muito tempo pairou sobre o tema dos contratos internacionais uma certa aura de exclusão: eles não seriam para todos. Poucos eram os players do comércio internacional e, em menor número, os profissionais que atuavam na área. Hoje, contudo, todos nós estamos submetidos a negócios dessa índole. Dos dados pessoais cedidos à tributação dos importados, é preocupação do brasileiro médio a possibilidade de acesso a outros mercados.

A questão, então, que motiva minha provocação é como o Direito contratual brasileiro vem sendo adaptado a esta realidade? Para fins de didatismo, permitam-me dividir a resposta em duas partes: a primeira é a aceitação da escolha do Direito aplicável ao contrato internacional como regra geral e, a segunda, são os obstáculos criados pelo Legislador.

A aceitação de que contratantes possam escolher o Direito que será aplicado ao seu contrato, desde que internacionalizado, tem reconhecimento bastante amplo entre nossos parceiros do MERCOSUL, vizinhos das Américas e primos europeus. Neste sentido, inúmeras as iniciativas internacionais de destaque poderiam ser citadas, mas me contentarei com duas[4] com viés de harmonização: os Princípios da Haia relativos à escolha do Direito aplicável aos contratos comerciais internacionais (2015)[5] e o Guia da OEA relativo ao Direito aplicável aos contratos comerciais internacionais nas Américas (2019)[6]. A concentração destes esforços em negócios empresariais tem duas explicações: uma certa tradição internacional de tratamento do tema dentro de maior espaço de liberdade e, claro, a necessidade de se assegurar a paridade negocial.

No Brasil, o tema acaba sendo tratado – também – de forma a incluir a proteção dos consumidores, razão pela qual desde nossas propostas de tratamento junto a própria OEA (CIDIP), até os projetos de lei (por exemplo, PLS 1.038/2020) em tramitação e o Acordo aprovado no MERCOSUL tratam do tema sob perspectiva diferente.  Em termos gerais, poderíamos dizer que não há uma regra que autorize contratantes (paritários) a escolher o Direito aplicável ao seu contrato internacional. Contudo, com isso se criou, também, salvo engano, outra tendência: afastar a escolha é medida de proteção do vulnerável. Acredito que, em algum sentido, há certa desconfiança de que o Direito estrangeiro pode ser ‘prejudicial’ ao contratante brasileiro. Para isto basta invocar um eloquente exemplo, verdadeiro jabuti incluído no projeto de lei que acabou alterando o Código de Defesa do Consumidor para tratar do tema do superendividamento. Pretendia-se tornar abusiva cláusula que previsse a aplicação de lei estrangeira[7]. E se ela fosse mais protetiva do consumidor?

Eis, então, que adentramos no segundo ponto. A partir da percepção de que a aplicação de um Direito não nacional é, presumivelmente, prejudicial, nosso legislador passou a criar obstáculos gerais à possibilidade de isso vir a acontecer. Ao lado das restrições usuais, como a de ordem pública (art. 17 LINDB), temos outras. As mais recentes delas acabam de ser promulgadas por meio da Lei n° 15.040/2024 que dispõe sobre normas de seguro privado.

Destaco, neste sentido, o rol do parágrafo 1° do art. 4°[8] que estabelece hipóteses em que a legislação brasileira será de aplicação mandatória. Este dispositivo completaria as restrições já previstas pelo art. 20[9] da Lei Complementar n° 126/2007 nitidamente pensadas como reserva de mercado. Com este passe de mágica: o mero fato de o segurado ter residência ou domicílio no Brasil seria suficiente para atrair a incidência mandatória da legislação brasileira. Se pensarmos nos mais comuns dos contratos de seguro (vida e saúde, por exemplo), talvez a preocupação até fosse pertinente. Mas, aparentemente criou-se uma regra geral sem ressalvar as particularidades: e as operações internacionais complexas que envolvem execução em diferentes países? Ou, pior: por que ferir de morte a autonomia privada para negociadores paritários? Poderíamos até mesmo argumentar que uma coisa é se proibir a escolha do Direito aplicável (como, infelizmente já estamos acostumados), outra é excluir a incidência do Direito estrangeiro. Neste ponto, ouso indagar: e se este Direito fosse mais benéfico ao segurado?

Até mesmo a forma como o referido dispositivo foi redigido pode causar problemas. Note que o seguro saúde contratado, no exterior, para viagem internacional (art. 20, II da LC 126/2007) pode passar a, necessariamente, se submeter a legislação brasileira. Afinal, a Lei Complementar não aborda o tema, limitando-se a autorizar a contratação.

Esta perspectiva de exclusão da incidência do Direito estrangeiro passa, ainda, por estratégias de limitação da escolha do foro. O art. 130[10] da Lei n° 15.040/2024  inova a técnica legislativa ao estabelecer competência exclusiva brasileira para casos envolvendo contratos de seguro. Uma breve passada de olhos no art. 23 do CPC permite concluir que as demais hipóteses tinham algum fundamento territorial. Esta inovação é, até mesmo, mais agressiva que a tentada pela recente alteração do art. 63, §1°[11] do mesmo CPC que tratou de limitar a escolha do foro para casos de consumo. Um último exemplo é o art. 129[12] da Lei n° 15.040/2024 que consagra a arbitragem mandatoriamente sediada e regida pelo Direito brasileiro, criando exceção injustificada para o art. 2°, §§1° e 2° e art. 21, ambos da Lei n° 9.307/1996.

E porque falar de DIPRI, então, é relevante? Perguntar-me-ia o atento leitor. Porque em todos estes exemplos, padecemos da síndrome do avestruz: escondemos a cabeça até o risco passar. Preciso, contudo, contar dois segredos: avestruzes não fazem isso, muitas vezes até mesmo tomam a ofensiva; e, além disso, o risco de inserção internacional não passará. A resposta que o Direito Contratual brasileira precisa dar para os desafios que se avizinham é enfrentar as particularidades dos casos internacionais, criando as regras necessárias para que as soluções que tenhamos não sejam, apenas, chauvinistas por desconhecimento.

[1] Para o leitor que se interessar pelo tema, posso sugerir o artigo: https://glitzgondim.adv.br/wp-content/uploads/2018/05/2017-GLITZ-Direito-estrangeiro-e-o-juiz-nacional-como-as-Cortes-Superiores-brasileiras-aplicam-o-Direito-estrangeiro.pdf.

[2] Art. 13. “Regulará, salvo estipulação em contrário, quanto à substância e aos efeitos das obrigações, a lei do lugar, onde forem contraídas”.

[3] Art. 9º LICC: “Para qualificar e reger as obrigações, aplicar-se-á a lei do país em que se constituirem.”

[4] Se o leitor tiver a curiosidade, posso sugerir a leitura de minha tradução destes instrumentos: https://glitzgondim.adv.br/biblioteca/contratos-internacionais-e-a-escolha-do-direito-aplicavel-traducao-dos-principios-haia-e-guia-da-organizacao-dos-estados-americanos-oea/.

[5] A tradução oficial para o português está disponível em: https://assets.hcch.net/docs/875f0793-9618-4753-aec6-9450dcc01316.pdf.

[6] A tradução oficial para o português está disponível em: https://www.oas.org/es/sla/ddi/docs/publicacoes_digital_Guia_sobre_o_Direito_Aplicavel_aos_Contratos_Comerciais_Internacionais_nas_Americas.pdf.

[7] Este trecho acabou sendo vetado. Para detalhes, sugiro a leitura de outro texto desta coluna: https://www.conjur.com.br/2021-jul-02/glitz-lei-superendividamento-consumidor-internacional/.

[8] Art. 4º O contrato de seguro, em suas distintas modalidades, será regido por esta Lei. § 1º Sem prejuízo do disposto no art. 20 da Lei Complementar nº 126, de 15 de janeiro de 2007, aplica-se exclusivamente a lei brasileira: I – aos contratos de seguro celebrados por seguradora autorizada a operar no Brasil; II – quando o segurado ou o proponente tiver residência ou domicílio no País; ou III – quando os bens sobre os quais recaírem os interesses garantidos se situarem no Brasil.

[9] Art. 20.  A contratação de seguros no exterior por pessoas naturais residentes no País ou por pessoas jurídicas domiciliadas no território nacional é restrita às seguintes situações: I – cobertura de riscos para os quais não exista oferta de seguro no País, desde que sua contratação não represente infração à legislação vigente; II – cobertura de riscos no exterior em que o segurado seja pessoa natural residente no País, para o qual a vigência do seguro contratado se restrinja, exclusivamente, ao período em que o segurado se encontrar no exterior; III – seguros que sejam objeto de acordos internacionais referendados pelo Congresso Nacional; e IV – seguros que, pela legislação em vigor, na data de publicação desta Lei Complementar, tiverem sido contratados no exterior. Parágrafo único.  Pessoas jurídicas poderão contratar seguro no exterior para cobertura de riscos no exterior, informando essa contratação ao órgão fiscalizador de seguros brasileiro no prazo e nas condições determinadas pelo órgão regulador de seguros brasileiro.

[10] Art. 130. É absoluta a competência da justiça brasileira para a composição de litígios relativos aos contratos de seguro sujeitos a esta Lei, sem prejuízo do previsto no art. 129 desta Lei.

[11] Art. 63, § 1º A eleição de foro somente produz efeito quando constar de instrumento escrito, aludir expressamente a determinado negócio jurídico e guardar pertinência com o domicílio ou a residência de uma das partes ou com o local da obrigação, ressalvada a pactuação consumerista, quando favorável ao consumidor.

[12] Art. 129. Nos contratos de seguro sujeitos a esta Lei, poderá ser pactuada, mediante instrumento assinado pelas partes, a resolução de litígios por meios alternativos, que será feita no Brasil e submetida às regras do direito brasileiro, inclusive na modalidade de arbitragem.

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