A série Upload foi lançada pela Amazon Prime em 2020 e retrata sociedade futura em que alguns seres humanos poderiam optar por dar continuidade à sua vida em um ambiente virtual post mortem por meio do upload de sua consciência em ambiente de realidade aumentada. Entre os diversos questionamentos trazidos pela série (alerta de spoiler!), destacam-se: o acesso a esses serviços, uma vez que há enormes diferenças entre os pacotes de dados oferecidos por diversas empresas; o consentimento (ou a ausência dele) dado em condições extremis para a autorização de carregamento; quem pode manter interação com o falecido; e as consequências de eventual inadimplemento contratual. E é sobre esse último aspecto que esse breve ensaio irá se concentrar.
Você pode estar pensando por que deveria ler um artigo que versa sobre transmissão de consciência e extensão de vida virtual após a morte se essas tecnologias nem existem ainda. E é verdade, tecnologias de transferência de consciência realmente ainda não foram patenteadas, mas tecnologias que emulam a pessoa morta estão em desenvolvimento, algumas já foram patenteadas e, em breve, pretendem chegar ao mercado; outras já estão aí disponíveis.
Empresas como a Microsoft estão desenvolvendo softwares de inteligência artificial (IA) que, baseados em dados pessoais do morto coletados a partir de redes sociais, imagens, textos escritos, etc., permitem que familiares e amigos conversem com o falecido por meio de chatbots conversacionais1 que simulam a personalidade do morto. A patente não é nova (data de 2017), mas sua aprovação só ocorreu em 20202 e prevê não apenas a interação por texto, mas também por voz e imagem.
No começo de agosto de 2021 o Mercado Livre em parceria com a Soundthinkers surpreendeu em campanha publicitária que utilizou técnicas de reconstrução digital de imagem e da voz do já falecido pai do jogador Zico, para surpreendê-lo em homenagem3. A técnica que aplica sistema de síntese neural não é novidade em si, já havia sido utilizada em duas oportunidades em filmes da franquia Star Wars e até em fins ilícitos como os deepfakes.
Em 22 de setembro de 2021 noticiou-se que a Plataforma Projetc December, criada por Jason Rohrer em setembro de 2020 e mantida pela OpenAI, permitia que qualquer pessoa criasse seu chatbot utilizando um avançado sistema de inteligência artificial (GPT-3). A plataforma tinha como proposta permitir que seus usuários adaptassem chatbots para as suas realidades, não fazendo qualquer ressalva sobre o uso para emular pessoas já falecidas. Por isso, o escritor chamado Joshua, aproveitando a lacuna contratual, resolveu utilizar a tecnologia para simular conversas com sua falecida noiva, o que estaria lhe auxiliando a superar o trauma de sua morte e a processar o luto. Quando a história foi noticiada a empresa OpenAI exigiu que o programador inserisse restrições no sistema para que esse tipo de situação não voltasse a ocorrer4.
Outro tipo de tecnologia já disponível no mercado é aquela que permite que fotos sejam transformadas em vídeos de alguns segundos (10 a 20 segundos). Esse serviço é oferecido pela Deep Nostalgia (hospedada na plataforma de genealogia MyHeritage e em outros aplicativos), lançado e fevereiro de 2021, que também utiliza inteligência artificial para dar vida a fotos. O programa utiliza vídeos pré-gravados de movimentos da face humana e, após melhorar a qualidade do documento, aplica-os sobre a imagem disponibilizada pelo usuário5.
Em 2019 se falava de ‘ressuscitar grandes nomes da música’ internacional para apresentação em shows6. Coloca-se, no entanto, como um desafio para o Direito uma vez que as novas imagens são inéditas, ou seja, não foram originalmente produzidas ou autorizadas pelo retratado. Pior. Obrigações contratuais e créditos (de diferentes naturezas) estariam sendo criados por alguém e para aqueles que até pouco tempo eram meros titulares (sucessórios, muitas vezes) de direitos já existentes. O próprio acervo patrimonial do de cujus poderia estar sendo inflado não por fruto de trabalhos pretéritos, mas futuros.
No entanto, para além dos momentos nostálgicos e do auxílio com o luto, é necessário refletir sobre os direitos do morto. Há tempos já se sabe que os direitos de personalidade se estendem para depois da morte de seu titular, mas, com essas tecnologias, para além de se discutir autodeterminação corporal7 após a morte e direitos relacionados à herança digital, dá-se um passo além, é preciso tutelar a identidade pessoal e os valores existenciais do morto.
Com a morte, extingue-se a personalidade jurídica, mas não se aniquila por completo direitos do falecido, em especial aqueles que se referem à sua personalidade. Estende-se para além da existência física a tutela do nome, imagem, honra, vida privada, etc., protegendo-se, de forma perene, sua dignidade. Por isso, tutelar identidade pessoal e valores existenciais em face dessas tecnologias que visam emular a pessoa é tão imprescindível quanto tutelar a própria pessoa ainda em vida. O bem jurídico aqui tutelado são os aspectos da personalidade do falecido, preservando-se a sua memória, os seus desejos, os seus valores, a sua forma de conduta. Trata-se de verdadeiro direito de autodeterminar seu legado e como será lembrado.
O Código Civil estabelece ampla e controversa legitimidade nos arts. 12 e 20, parágrafo único, CC, para que cônjuge ou parentes de até quarto grau em linha reta ou colateral exerçam a defesa dos direitos de personalidade post mortem. “A tutela da personalidade do homem no direito brasileiro dá-se mediante um sistema misto. Realiza-se através da cláusula geral protetora da personalidade, tendo o legislador recepcionado a categoria do direito geral de personalidade ao lado de direito especiais de personalidade tipificados na Constituição e em lei”8.
No entanto, a lei não pensou que essas mesmas pessoas poderiam um dia servir-se das memórias do morto para recriá-lo e, se permitida a analogia, reobrigá-lo. Diante das tecnologias antes apresentadas é preciso pensar em freios e talvez o primeiro e mais simples seja a necessidade de consentimento do falecido para a perpetuação de sua via post mortem.
A utilização da imagem e eventualmente as possibilidades de nova contratação sobre aqueles traços de memória e mídia não seria reificar a pessoa? Qual o nível de determinação esperado? O silêncio em disposição de última vontade seria entendido como permissão? Parafraseando a famosa atriz Greta Garbo, não se poderia exigir “ser deixado só”? Haveria um direito de afirmar que a morte é definitiva ou a tecnologia poderia decretar a morte da morte?
Sem essa autorização expressa, seja porque ele mesmo contratou o serviço, seja porque em outros documentos autorizou que terceiros o fizessem, não se pode falar em legitimidade do uso de direitos de personalidade post mortem. Não há, um direito de propriedade dos herdeiros sobre direitos de personalidade do morto e, por consequência, sobre seus frutos ou exploração de prestações futuras.
A defesa da memória do falecido é condição de preservação de seus valores existenciais. Mas, vamos focar na nossa proposta inicial. Pensando que o morto deixou expressa autorização para o uso de tecnologias que o recriam após a morte, é devemos discutir os eventuais reflexos do inadimplemento contratual seja por parte do prestador de serviço, seja pela pessoa encarregada de gerenciar o serviço após a morte do titular. Como deverá ser determinada a responsabilidade civil contratual pelo desaparecimento da pessoa ad eternum?
Tal análise poderia, aliás, perpassar vários níveis. Retomemos a primeira temporada da referida série (alerta de spoiler!) para retratar alguns:
(i) ao deixar de arcar com os custos de perpetuação da consciência de seu falecido namorado, o personagem passa a sofrer diversas limitações de carregamento de dados. Já de partida temos uma consequência não patrimonial para eventual inadimplemento contratual: deixar de existir (até o próximo pagamento). O Direito Privado contemporâneo tem, como se sabe, limitado as hipóteses de pressão ao adimplemento circunscrevendo-as ao patrimônio (vide, por exemplo, o art. 789 do CPC e art. 391 do CC).
(ii) Na série, o hóspede do pós-vida é consumidor utente, beneficiário de contrato entabulado por sua então namorada (e talvez parte de uma estratégia de prisão emocional). Como alguém poderia dispor sobre os direitos de personalidade de outrem? Ele poderia vir a ter sua experiência de consciência limitada pelo eventual inadimplemento da devedora?
(iii) Como seria tratado o eventual inadimplemento das prestações mensais de manutenção da consciência ativa? Seria obrigação preservá-la independente de pagamento (favor debitoris) ou, ao invés de mera mora, haveria resolução a permitir a extinção do contrato (e da consciência)? Qual o limite, portanto, do interesse creditício?
(iv) No seriado, o personagem principal consome bens e serviços digitais. Algo nada longe de uma realidade que já experimentamos com o non fungible tokens (NFT) e adereços, cenários, expansões e equipamentos nos jogos de realidade aumentada. Como endereçar este consumo? Como tratar seus vícios de serviço, defeitos e auferir consentimento. É possível que alguém com consciência ativada em realidade aumentada seja considerado capaz e possa validamente consentir?
(v) Como medir as cláusulas penais e as cláusulas de limitação de responsabilidade? O defeito do serviço que apague a consciência é hipótese de perda de uma chance?
(vi) Considerando a existência consciente em um pós-vida, qual seria o regime jurídico deste negócio para fins até mesmo de interpretação de execução e identificação dos deveres decorrentes do standard esperado?
As realidades complexas e dinâmicas trazidas pelas novas tecnologias desafiam o Direito e, agora, desafiam também a morte. Não é possível pensar sobre essas novas inquietações a partir de velhas teorias sobre direitos de personalidade e tampouco da responsabilidade civil. É preciso dar um passo além, agora com os olhos de quem é tentado por tecnologias que prometem a imortalidade.