Recentemente foi divulgado, pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o relatório Justiça em números de 20211, com base nos dados de 2020, importante fonte de dados estatísticos da realidade judicial brasileira. Este tipo de pesquisa permite, por exemplo, que sejam adotados mecanismos orçamentários e ajuda a avaliar os pontos sensíveis de política legislativa e judiciária.
Em um brevíssimo resumo de suas conclusões pode-se destacar que, nos Judiciários estaduais, preponderam casos envolvendo temáticas de Direito Privado (relativos ao cotidiano de cada um de nós, com mais de 10,5% do total) associados a processos de conhecimento (visando a declaração do direito, com 23,25% do total). Acrescente-se, ainda, segundo os dados do próprio relatório, que a Justiça estadual é responsável por 64,7% das unidades totais do Poder Judiciário, sendo a principal porta de acesso ao cidadão para exercício de seus direitos. Tais casos, contudo, têm fugido, em geral, à competência dos Juizados Especiais (com apenas 12,7% do total de casos submetidos à estrutura estadual), ou seja, eles podem ser considerados mais complexos; envolver temáticas com valores acima dos 40 salários-mínimos ou, ainda, tratar de temas mais sensíveis (família, direitos de personalidade, etc.).
Estes números, frise-se, representam a atual demanda associada à litigiosidade e não se referem aos casos resolvidos de forma alternativa à judicial. Assim, por exemplo, o enorme esforço legislativo para adoção de soluções não judiciais para casos que vão de inventários à alteração de registros civis acabam não expressos nesta estatística, mas podem ser constatados na análise comparada ano após ano.
Por outro lado, a pesquisa indica o percentual médio de 7,3% para os casos conciliados pela atual estrutura judicial estadual, ou seja, judicializados, mas resolvidos por transação (redução em relação aos números anteriores de mais de 9%).
Até este ponto, então, podemos concluir que os casos judiciais de 2020 são eminentemente relativos a temas privados e mais complexos, tendo um ambiente menos propenso ao consenso.
Outro dado importante é que estes novos casos têm se concentrado, eminentemente, em temática contratual/obrigacional (8,28% do total). O que isto quer dizer? São casos que envolvem controvérsias sobre a formação, interpretação e execução de contratos e pedidos indenizatórios (incluindo descumprimento contratual). Estes dados chamam a atenção especialmente porque se concentram em áreas que são, por excelência, compatíveis com posturas de soluções consensuais de conflitos e instrumentos de prevenção e compliance. Saliente-se, contudo, que o relatório não individualiza temas como a natureza dos contratos (empresariais, civis ou de consumo) ou eventuais violações às normas da Lei Geral de Proteção de Dados, que poderiam permitir uma conclusão mais aprofundada.
O que se pode, contudo, concluir de forma geral é que cada vez mais é relevante a adoção de medidas preventivas ao conflito, especialmente em temas que podem ser objeto desta estratégia. Tal postura parte, muitas vezes, da conscientização e alteração de postura pessoal e/ou de cultura corporativa. Daí porque não só o acesso à judicialização é importante, mas também à informação. Não é à toa, portanto, o reforço legislativo constante no princípio da boa-fé objetiva: veja, por exemplo, a reforma do CDC para tratar o tema do superendividamento2, seja nas alterações promovidas pela Lei de Liberdade Econômica3 no Código Civil.
Assim, por exemplo, todos sabemos que demandas judiciais demandam tempo e investimento. O relatório indica que, para o processo de conhecimento ajuizado no Poder Judiciário estadual, a média de tramitação é de 3 anos e 8 meses em primeiro grau, eventualmente acrescido de mais 1 ano e 11 meses em segundo grau. Se for necessária a execução da decisão, a média é, ainda, acrescida de 6 anos e 11 meses. Totaliza-se, assim, uma média de 12 anos e 6 meses. Isso se, de fato, o eventual crédito for satisfeito. Claramente, portanto, o custo a ser considerado não é apenas aquele financeiro, expresso nas custas judiciais a serem pagas.
Ao lado do tempo, precisa-se ter em mente o quanto custa promover e manter uma demanda judicial. Tal análise deve englobar não apenas o quanto custa manter um departamento jurídico e/ou contratar de advogados, mas também o tempo e esforço produtivo desviado para reuniões, documentação, provas e audiências. Associe-se nesta análise, o desgaste de imagem/marca, das relações com fornecedores/consumidores e da cadeia de distribuição. Algumas vezes estes valores não são, contudo, percebidos, já que o total de encargos é subsidiado pelos mecanismos de assistência judiciária.
Este último aspecto também deve ser destacado: o quanto a sociedade brasileira desembolsa para manter tal estrutura – por meio dos impostos que todos pagamos (em 2020, totalizando despesas de mais de R$ 57,6 bilhões apenas para o Judiciário estadual) – para resolver questões que poderiam ser solucionadas com cuidados básicos.
É neste contexto, portanto, que passa a ser importante adoção de verdadeira cultura de prevenção em matéria contratual. Afinal, se contrato é uma tentativa de prever o futuro, os custos e riscos decorrentes da litigiosidade precisam ser conhecidos, avaliados e, eventualmente, tratados. Assim, se o consumidor precisa ser informado – ampla, correta e claramente – dos encargos e consequências do descumprimento é, justamente, para que avalie se pode arcar com eles e o quanto pesará não cumprir um contrato.
O conhecimento do custo (não apenas direto) e a avaliação do desgaste das possivelmente longas demandas judiciais devem motivar o investimento em mapeamento e análise de riscos e na implementação de medidas de adequação às normas vigentes. Além disso, a preparação para recepção de demandas – evitando sua judicialização – por meio de efetivos sistemas de ouvidoria/acolhimento e a valorização do processo de negociação e, eventualmente, mediação podem ser importantes ferramentas de contenção da litigiosidade.
Contudo, apesar de tudo isso parecer razoavelmente conhecido, é bastante interessante analisar como esta cultura vem sendo apresentada para os futuros operadores do Direito. E para isso, já em viés conclusivo, basta a análise da resolução 2/2021 da Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação que altera a resolução n° 5/2018 que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Direito.
Embora seja ‘priorizada a interdisciplinaridade e a articulação de saberes’ e constar como disciplina obrigatória as ‘formas consensuais de solução de conflitos’ pouco ou nenhum espaço é destinado às ferramentas de Gestão e avaliação de riscos (nem mesmo como disciplinas recomendadas) e, por consequência, de prevenção. Aliás, sabe-se que os diferentes Programas dos Cursos de Direito são baseados nesta Resolução e dela pouco fogem. Por outro lado, hoje inúmeras formas de incentivar (e simular) este tipo de cuidado dentro das próprias disciplinas obrigatórias, mas não necessariamente como “solução de conflitos”. Os Moots já existentes podem representar importante exemplo neste sentido.
Entende-se que tudo isso passa por uma importante reavaliação da postura pessoal, de comportamento corporativo em que a conscientização (muito baseada na alteridade) e o treinamento/educação são absolutamente relevantes. Por fim, também a cultura da litigiosidade precisa ser percebida como socialmente danosa. Tudo isso passa, portanto, pela Educação (em todos os níveis).