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A FUTURA LEI DO SUPERENDIVIDAMENTO E O CONSUMIDOR INTERNACIONAL (CONJUR)

Por Frederico E. Z. Glitz

Publicado em 02/07/2021

Em breve deveremos ter a sanção presidencial e promulgação definitiva do Projeto de Lei nº 1.805/2021 já denominado Lei do Superendividamento e apontado por muitos como importante ferramenta para a economia brasileira pós-pandêmica. O senhor presidente da República tem até esta quinta-feira (1º/7) para vetá-lo ou sancioná-lo.

Do que se trata esse texto? É texto substitutivo, já aprovado pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, de projeto de lei do Senado que tramitava originariamente havia oito anos (PLS nº 283/2012). Ele visa a alterar a atual redação do Código de Defesa do Consumidor e do Estatuto do Idoso para “aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor” e entrará em vigor na data de sua publicação. As alterações promovidas são bastante extensas e não se limitam à definição do que venha a ser o superendividamento (“impossibilidade manifesta de… pagar a totalidade de suas dívidas de consumo”).

O texto da futura legislação, por exemplo, prevê a inclusão, na Política Nacional das Relações de Consumo, de medidas de valorização da educação financeira e o tratamento e as medidas preventivas ao superendividamento. Esses pontos, aliás, são também alçados ao posto de “direitos básicos do consumidor” junto à informação do preço por unidade de medida (algo já previsto na Lei nº 10.962/2004, com redação dada pela Lei nº 13.175/2015) e a preservação do mínimo existencial por meio de instrumentos de revisão e repactuação de dívida.

Destacamos, contudo, outros dois pontos que não podem passar desapercebidos em razão da quantidade e volume de alterações realizadas na redação original dos dois estatutos. Tratam-se justamente dos futuros incisos XVII e XIX do artigo 51 do Código de Defesa do Consumidor.

Pelo seu texto, tornar-se-iam cláusulas abusivas, e, portanto, “nulas de pleno direito”, as cláusulas que (XVII) “condicionem ou limitem de qualquer forma o acesso aos órgãos do Poder Judiciário” e (XIX) “prevejam a aplicação de lei estrangeira que limite… a proteção assegurada” pelo Código de Defesa do Consumidor.

A redação desses dispositivos e sua interpretação devem ser feitas com certo cuidado. Cientes disso, passemos inicialmente à análise do inciso XVII.

Trata-se de redação geral que já constou de outros instrumentos que visavam à proteção do consumidor (por exemplo, item 3 da Portaria SDE nº 03/2001). Seu problema, contudo, está justamente em sua generalidade, isso porque aparentemente o dispositivo pode estar direcionado a cláusulas de eleição de foro estrangeiro (cláusulas por meio das quais se escolhe o órgão judicial responsável pela análise de futuro conflito). Mas não seria positivo que assim o fizesse?

Acontece que a análise de eventual abusividade do contrato e de suas cláusulas (mérito) depende, previamente, da identificação do Direito aplicável ao contrato (por exemplo, se o contrato foi celebrado nos Estados Unidos, será o Direito americano aplicável a ele — mesmo que seja o conflito julgado no Brasil). Antes da análise do mérito de qualquer caso internacional, contudo, é imprescindível afirmar a competência daquele que o julga. Assim, ao se afirmar que a cláusula é abusiva, se estaria aplicando — de antemão — o Direito brasileiro (CDC), sem se saber se a pessoa que o faz é competente para julgar o contrato e mesmo se o Direito que deve ser aplicado é o brasileiro.

Nesse aspecto, portanto, seria mais aconselhável que fosse — também — reformado o próprio CDC ou o artigo 25 do Código de Processo Civil para proibir ou limitar a eleição de foro estrangeiro em contratos de consumo celebrados no Brasil e, ainda, a LINDB para determinar a aplicação do Direito brasileiro quando o consumidor aqui fosse domiciliado, por exemplo. De qualquer forma, tais reformas, em princípio, não alcançariam contratos celebrados fora do Brasil que não estivessem sujeitos à legislação e à jurisdição brasileiras.

Já o futuro inciso XIX se direciona à escolha do Direito aplicável a contratos internacionais de consumo. Em princípio, pela atual legislação brasileira, a proibição seria desnecessária, já que a LINDB (artigo 9º) determina a incidência obrigatória de Direito por ela definido, não cabendo às partes a sua escolha. Assim, uma cláusula inserida em um contrato celebrado no Brasil que determine a incidência de Direito diverso daquele definido pela LINDB já seria ineficaz. O problema surge quando o contrato não tiver sido celebrado/formado no Brasil, incidindo, por exemplo, legislação que permita tal escolha. Nesses casos sequer seria aplicável o CDC. A dúvida residiria, então, se no futuro poderia a parte invocar esse dispositivo para que fosse negada a eventual homologação de sentença estrangeira?

O tema do Direito aplicável a contratos internacionais de consumo submetidos à jurisdição brasileira, aliás, já foi e é objeto de outros dois projetos de lei (PLS nº 281/2012 e 1.038/2020, respectivamente) que visam à alteração da redação da mencionada LINDB e que o abordam de forma mais detalhada. Infelizmente, a tramitação e a discussão da Lei do Superendividamento não os aproveitou.

O leitor que nos acompanhou até aqui pode estar se preocupando: mas isso tudo é relevante? Sim, até porque a contratação a distância e a internacionalização dos contratos de consumo é realidade antiga. Antes da crise sanitária, por exemplo, proliferavam os contratos de timeshare celebrados no exterior por consumidores turistas brasileiros. Atualmente, com a aceleração da digitalização das relações negociais (outsourcing digital, prestação de serviços a distância etc.) é uma realidade. Aliás, você já checou os termos das redes sociais e dos aplicativos de comunicação que utiliza? Invariavelmente você encontrará essas duas cláusulas por lá.

 

Frederico Glitz é advogado, mestre e doutor em Direito pela UFPR.

Revista Consultor Jurídico, 2 de julho de 2021, 7h14

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