Sim, ainda se morre de doenças transmitidas por carrapatos no Brasil. Buscando as últimas atualizações do noticiário, apenas no interior do Estado mais rico da Federação, constatar-se-á a morte de quatro pessoas e a suspeita de contaminação de mais dezessete1 que, após participarem de dois eventos distintos em uma mesma fazenda na zona rural de São Paulo (próximo a Campinas), contraíram Febre Maculosa (FM). Pessoalmente, há tempos não ouvíamos falar dessa doença, muito menos que ainda matava no Brasil. Ela é considerada endêmica2 em várias regiões do país, no entanto. Entre 2013 e 2023 o Ministério da Saúde registrou 2059 casos em todo Brasil, sendo 1292 concentrados na região Sudeste. Destes, foram registrados 703 óbitos, sendo 623 na mesma região3.
A Febre Maculosa é uma doença infecciosa de notificação compulsória4 e imediata, considerada de gravidade variável e elevada taxa de letalidade (acima de 20%, podendo chegar a 55%). A doença é provocada pela bactéria Rickettsia rickettsii (Febre Maculosa Brasileira, mais grave), presente no norte do Paraná e nos Estados do Sudeste e pela bactéria Rickettsia parkeri (mais leve) registrada na Mata Atlântica brasileira (Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Bahia e Ceará)5. No país, os principais vetores são os carrapatos do gênero Amblyoma (carrapato estrela) infectados pela bactéria, mas qualquer espécie de carrapato pode, eventualmente, ser vetor da doença.
O período de incubação varia de dois a quatorze dias, manifestando-se, muitas vezes, subitamente e evoluindo rapidamente. Os principais sintomas são febre, dor de cabeça intensa, náuseas e vômitos, diarreia e dor abdominal, dor muscular constante, inchaço e vermelhidão nas palmas das mãos e solas dos pés, gangrena nos dedos e orelhas e paralisia dos membros iniciando pelas pernas e chegando aos pulmões, manchas vermelhas nos pulsos e tornozelos que vão aumentando com a progressão da doença6.
O diagnóstico precoce é difícil7 não só porque os sintomas iniciais se confundem com os de outras doenças, mas também porque exige amplo conhecimento médico sobre doenças recorrentes em dadas regiões (nem sempre viável para os turistas infectados atendidos em sua região de origem). Quando não é confundida com outras, a exemplo, da dengue, também endêmica em vários Estados. O médico poderá solicitar exames laboratoriais complementares8 para confirmação do diagnóstico e que serão realizados pelos Laboratórios Centrais de Saúde Pública (LACENS), integrantes da rede oficial de vigilância em saúde.
O tratamento oportuno visa impedir o agravamento da doença e é feito com antibiótico específico e, eventualmente, internação (a taxa de internação chega a 80%). O início do tratamento deve ser realizado imediatamente, mesmo antes dos resultados laboratoriais. A terapêutica, em regra, será ministrada no período de sete dias, sendo mantida em, no mínimo, três dias após o controle da febre.
Por fim, o Ministério da Saúde indica como medidas a serem adotas em locais em que pode haver exposição aos carrapatos: usar roupas claras para ajudar a identificar o animal; usar calças, botas e blusas com mangas compridas ao caminhar em áreas arborizadas e gramas; evitar caminhar em locais com grama ou vegetação alta; usar repelentes de insetos; verificar se você ou seus animais de estimação estão com carrapatos ao sair das áreas; ao encontrar um animal usar pinça para removê-lo, puxando com firmeza; lavar a área da mordida com álcool ou sabão e água; após lavar suas roupas em água fervente para retirar os insetos remanescentes (Nota Técnica n. 114/2022-CGZV/DEIDT-SVS/MS).
A frieza dos dados estatísticos causa não apenas o espanto com o não controle da doença, como também pela normalidade com que vinha sendo tratada. Daí, talvez, a surpresa demonstrada pela cobertura jornalística: as contaminações teriam ocorrido em eventos realizados em zona endêmica da doença.
Pior, a sua existência e risco são considerados fatos notórios entre a população e gestores locais e, portanto, a depender da legislação processual brasileira, independentes de prova (art. 374 do CPC). Apesar disso, de todos os relatos, é possível observar que nenhuma advertência sobre o risco da doença ou sobre os cuidados preventivos foi feita nos convites/ingressos, bem como nenhuma orientação sobre eventuais sintomas foi oferecida aos participantes/consumidores daqueles eventos. Também não se relatou a recomendação dos cuidados profiláticos básicos e, surgidos os casos, o alerta de que poderiam se relacionar à doença.
Diante de um cenário destes, então, seria razoável imaginar que caberia ao fornecedor algum dever de informação e, claro, responsabilização em caso de descumprimento?
Podemos nos socorrer do interessantíssimo precedente do Superior Tribunal de Justiça que avaliou a responsabilidade de hotel pela ausência de advertência envolvendo o perigo de salto em piscina para afastar a excludente de responsabilidade da ‘culpa exclusiva do consumidor’ (Recurso Especial n° 287849/SP, julgado em 2001). Ainda que, no caso, possa ter havido a atribuição de um risco em razão de um dano injusto9, o fato é que – do ponto de vista negocial em sentido estrito – a ausência do completo adimplemento do dever de informação poderia atrair tal responsabilidade. Lá se tratou de caso em que jovem embriagado pulou em piscina, lesionando-se gravemente. Considerou-se que a existência de informação sobre o horário de funcionamento não seria suficiente, exigindo-se que fossem esclarecidos os riscos e o nível da água. Lembre-se, ademais, que o próprio Superior Tribunal de Justiça já considerou, em outro importante precedente, que a informação deve ser “correta (=verdadeira), clara (=de fácil entendimento), precisa (=não prolixa ou escassa), ostensiva (=de fácil constatação ou percepção) e, por óbvio, em língua portuguesa.” (Recurso Especial n° 1.758118/SP, julgado em 2019).
A questão a se saber, então, é em que medida o fornecedor (seja o organizador do evento, eventualmente seu patrocinador ou explorador comercial) se preocupou e colocou em ação medidas informacionais preventivas. Talvez, mesmo, fosse o caso de se indagar se foram tomadas medidas mais aprofundadas como a limpeza do espaço, a utilização de pesticidas adequados, etc. Os relatos não indicam, no entanto, a existência de medidas de advertência ou profilaxia. Este aliás é o cenário turístico brasileiro: mesmo em cidades com estrutura de acolhimento internacional, raramente se percebe este nível de preocupação na rede hoteleira, por exemplo (seja em relação à dengue ou à febre amarela).
Poder-se-ia até argumentar que este padrão de informação seria extrapolar o nível do gerenciamento de riscos para algo irreal do ponto de vista da governança. Ousamos discordar, afinal o turista que retorna dos bem-organizados safaris sul-africanos relata, usualmente, a constante advertência sobre os riscos da malária.
A questão prática a se saber é se o risco do empreendedor abrangeria riscos sanitários ou, ao menos, sobre a informação de sua existência. Em outros termos, qual a abrangência do art. 931 do Código Civil ou em que medida é defeituoso o serviço a partir do art. 14 do Código de Defesa do Consumidor.
Uma breve passagem de olhos na legislação consumerista parece indicar que tal ‘cuidado’ é dever: desde a informação sobre riscos inerentes ao serviço (art. 6º, I) e a efetiva prevenção do dano (art. 6º, VI) como direitos básicos do consumidor, assim como o dever de informação prévio sobre os perigos à saúde e segurança (art. 9º) e o dever de informação posterior ao conhecimento da concretização do risco (art. 10, §1°) atribuídos ao fornecedor. Os relatos colhidos pela imprensa não indicam, por exemplo, nem uma, nem outra informação.
Deste ponto de vista, portanto, pode-se afirmar, então, que compõe a relação obrigacional do serviço turístico a informação adequada, clara, precisa e ostensiva sobre o risco a que aquele consumidor – especialmente vulnerável em razão do não conhecimento local – se sujeita ao contratar sua participação no evento. Não se tratava, portanto, de mero almoço em que – com certeza – deveriam estar destacados eventuais riscos alimentares (presença de glúten – Lei n. 10.674/03, por exemplo), mas de experiência mais ampla que envolveria a refeição, mas também, música e lazer. Em outros termos, a informação a ser prestada pelo fornecedor não se limitaria aos riscos alimentares, mas a todos os riscos a que aquele consumidor estaria exposto simplesmente por estar em ambiente rural.
A eventual inexistência de medidas sanitárias efetivas adotadas pela Municipalidade poderiam impactar esta conclusão? Pouco provável que a ausência delas modificasse o quadro de violação do dever de informação. Então, ainda que eventualmente se pudesse afirmar que a morte das quatro pessoas seria decorrente de evento fortuito, excludente de responsabilidade, a ausência de informação sobre risco conhecido dos organizadores dos eventos por si só torna o serviço defeituoso, a exemplo do citado precedente do STJ.
Assim, pode-se firmar que o fornecedor – neste caso – ao vender o ingresso para o evento gastronômico ao céu aberto e em fazenda não só precisaria indicar a composição dos alimentos, responsabilizar-se pelo caso de intempérie, como – também – por fatalidades decorrentes de doenças endêmicas. Sem sombra de dúvida, dentro da organização da atividade, potencializava-se o lucro pela experiência ‘rústica’. Caberia a ele, ao menos, informar o seu consumidor da possibilidade de chuva e de se tratar de uma região endêmica para doenças específicas, isso para não falar em dificuldades de logística (estradas de terra ou falta de sinal de GPS) ou de acesso a serviços de emergência.
Eventual falha da Administração local no exercício de sua fiscalização e regulação não afastariam esta responsabilidade, mas acrescentariam outro nível de responsabilização seja pela ausência das medidas em si (art. 7º, parágrafo único e art. 22 do CDC), seja pela ausência de cumprimento de seu próprio dever de informação (art. 10, §3° do CDC) e, na prática, criaria a solidariedade para eventual obrigação indenizatória (art. 25, §1° do CDC).
Ainda que o número de casos notificados seja considerado quantitativamente baixo, devido à gravidade e alta letalidade da doença, o dever de informação se apresenta ainda mais relevante.
Perceba-se que o próprio Ministério da Saúde reconhece o problema na Nota Técnica n. 114/2022-CGZV/DEIDT/SVS/MS10, de 7 de outubro de 2022. Nela, reafirma que se trata de doença prevalente na região Sudeste, com “frequente manifestações hemorrágicas e, consequentemente, altas taxas de letalidade (podendo chegar a 55%)”. A transmissão ocorre em ambientes propícios ao carrapato vetor. Adverte o documento que “o risco de infecção para os humanos tem sido relacionado com fatores de exposição que favorecem o contato com os carrapatos, principalmente em áreas rurais (atividades de lazer, pescaria, contato com capivaras, atividades de fazenda e outras atividades que possam ser desenvolvidas em ambientes onde tenham presença de carrapatos)”.
Após a notificação dos casos (aqui noticiados) ao Ministério da Saúde, a Vigilância Sanitária municipal determinou à fazenda diversas medidas de adequação para que possa voltar a receber eventos, entre elas: sinalização e advertências aos usuários sobre a FM, limpeza de áreas, adequação de espaços com pisos que evitem o contato com a grama. O plano de mitigação de riscos11 da transmissão da doença foi entregue à autoridade sanitária no dia 16 de junho. O que se indaga é por que essas medidas não foram tomadas previamente como determinada pela Nota Técnica antes mencionada? Lembre-se que a transferência de risco inerente ao serviço ao consumidor é considerada abusiva.
Destaca-se, ainda, que desde 2004 o Estado de São Paulo possui um Manual de Vigilância Acarológica, que prevê que o controle de carrapatos faz parte das atribuições da vigilância e controle de vetores. Em 2008, o Estado criou o Núcleo de Estudos de Doenças Transmitidas por Carrapatos com Ênfase na FMB, cujos trabalhos acabaram resultando na Resolução Conjunta n. 1, de 1° de julho de 2016, SEMA e SESA-SP, que determina que áreas classificadas como de risco ou de transmissão devam passar por manejo com o objetivo de reduzir o risco de circulação da bactéria.
Estas conclusões acabam sendo reforçadas pelo fato de que, em 16 de junho de 2023, a Vigilância Sanitária de São Paulo, expediu o Alerta n. 1/2023, NDTVZ/CIEVS/DVE/DVZ/COVISA/SMS12, sobre a Febre Maculosa Brasileira, na qual indica como medidas recomendas reduzir a letalidade com a divulgação e orientação sobre a doença; reduzir danos, agindo de acordo com as características de cada local e reduzir focos, evitando que se estabeleçam situações propícias à transmissão da doença. O Alerta deixa claro, então, que entre as medidas preventivas está a intensificação do dever de informação atribuível ao fornecedor e à Administração.