NOVAS REGRAS DO SAC: APONTAMENTOS CRÍTICOS
Frederico E. Z. Glitz[1]
Um dos atuais mantras das empresas que se pretendem socialmente responsáveis é a certificação de excelência no atendimento do consumidor. Para demonstrarem esta preocupação, muitas delas anunciam a adoção de instrumentos de governança socioambiental (ESG), ajustando sua comunicação para expressar termos como ‘inclusão’, ‘acolhimento’, ‘proteção’ e ‘atenção’. É muito difícil e, injusto, generalizar conclusões a partir de experiências pessoais, mas, confesso que não é fácil se sentir acolhido por diversos destes mesmos sistemas empresariais de atendimento ao cliente.
É neste contexto que se torna relevante um olhar crítico sobre a mais recente regulamentação do famoso Serviço de Atendimento ao Consumidor (SAC), recentemente publicada (Decreto n° 11.034/2022[2]) e que entrará em vigor em, aproximadamente, seis meses.
Antes de mais nada, deve-se lembrar que o tema (SAC) não é novo, uma vez que era regulamentado no Brasil desde 2008. Tornava-se necessária, entretanto, alguma atualização, especialmente, por exemplo, pelos meios de comunicação: dos telefones de 2008 para os “canais” mais abrangentes de 2022 (art. 2º).
Embora o âmbito de aplicação do Decreto continue o mesmo (serviços regulados como planos de saúde, telefonia e bancos – art. 1º), ampliou-se o escopo do SAC para incluir não apenas o acesso à informação, mas também o tratamento de demandas (art. 1º, II). Além disso, o atendimento telefônico será obrigatório, ainda que sem a mesma disponibilidade de acesso ininterrupto dos demais canais (apenas oito horas diárias – art. 4º, § 2° e art. 5º, I).
Aqui, por exemplo, já se encontram limitações regulamentares à propalada ‘inclusão’: o acesso fora de horário comercial, provavelmente, estará disponível apenas por meio de recursos eletrônicos, dificultando o acesso daqueles com restrições tecnológicas (acesso ou manuseio). Isso para não se mencionar o enigmático parágrafo terceiro[3] do mesmo art. 4º que abre brecha para a interrupção do atendimento. Além disso, embora se assegure a acessibilidade (art. 6º), as condições em que esta se dará dependem de futura regulamentação pelo Ministério da Justiça; algo muito distante da forma preferencial prevista no Decreto anterior.
O novo decreto aliás, inova negativamente em relação aos requisitos mínimos de garantia de atendimento. Se o antigo Decreto previa que a transferência para o atendimento presencial e definitivo deveria ocorrer em até sessenta segundos, não se admitindo transferência em caso de reclamação ou cancelamento; isto tudo agora dependerá de futura e incerta regulamentação do órgão competente. Aparentemente haverá incentivo para adoção de tecnologias de atendimento, como os “robôs” ou chatbots.
Já quanto à lógica da ‘atenção’, o novo Decreto também exige o consentimento do consumidor para veiculação de mensagens publicitárias (art. 4º, §5º), mas, paradoxalmente, não define as condições mínimas de como este consentimento será dado e autoriza – independentemente de consentimento do consumidor – a veiculação de mensagens de caráter informativo (§6º). Quem já teve a oportunidade de aguardar atendimento telefônico em um SAC sabe que consentimentos são obtidos por meio opções cansativas em menus pouco explicativos e que mensagens informativas são fáceis disfarces para publicidade institucional.
Além disso, a antiga proibição de que a ‘ligação’ não fosse finalizada antes da conclusão do atendimento – sempre ignorada – passou a ser uma possibilidade (art. 11), especialmente ao se permitir ao fornecedor sua conclusão (art. 11, III)! Ou seja, o consumidor passaria a ter o eventual ônus da falha do próprio sistema de atendimento. Quem já tentou cancelar um serviço por meio do SAC, sabe que são comuns longas esperas e sucessivas ‘quedas’ do sistema ou das ligações.
Este ponto, aliás, é de interessante do ponto de vista da responsabilidade civil incidente nas relações de consumo. No passado, por exemplo, já se entendeu que a perda do tempo do consumidor deveria ser indenizada uma vez que redundaria de “defeito” na prestação do próprio serviço (art. 14 do CDC). Este raciocínio, aliás, está na base da atual compreensão do desvio produtivo encampada pelo Superior Tribunal de Justiça[4]. Neste sentido, perde-se uma oportunidade de fixação de parâmetros mais objetivos de análise (ou de imputação de responsabilidade), tais como aqueles constantes das diversas leis municipais e estaduais para o tempo de espera em filas bancária
Também a presencialidade e a humanização do atendimento não parecem ser prioridades, uma vez que não se repete a preferência pelo atendimento pessoal. Isto impacta, é claro, na acessibilidade, ‘inclusão’ e ‘acolhimento’ já que ferramentas como chatbots nem sempre ‘entendem’ a solicitação do consumidor, são muitas vezes limitadas e, em muitos casos, parecem ser destinadas a criar uma antepara à reclamação ou cancelamento do serviço. Fora que sua utilização indiscriminada desumaniza o atendimento, especialmente daqueles não afeitos à tecnologia (vulneráveis, por exemplo). A pessoalidade do atendimento, aliás, não é necessariamente sinônimo de atraso tecnológico, mas de valorização do consumidor (vide a ênfase dada nesta característica de serviço, em várias peças publicitárias bancárias).
Do ponto de vista da responsabilidade civil, aliás, a clara definição de “nexos de imputação”[5] de responsabilidade civil para o caso de danos causados pela adoção de tecnologias assistivas de atendimento deve ser encarada como prioridade. Isto porque, para além das ‘quedas’, inúmeras situações danosas ao consumidor podem surgir deste atendimento, tais como o desvio produtivo, a utilização de vieses discriminatórios de atendimento, a utilização de algoritmos que selecionem as prioridades e recusem atendimentos com base em programação prévia, a captura de dados por terceiros, etc.
Há, claro, aspectos positivos na nova regulamentação: amplia-se o acesso do consumidor ao histórico de suas demandas, criando-se procedimento e prazo de envio do documento (art. 12). Além disso, prevê-se, expressamente, a suspensão imediata de cobranças questionadas (art. 13, §3°). Também se manteve o dever de manutenção da gravação das ligações por 90 dias e do registro do atendimento por dois anos, assim como o recebimento imediato dos pedidos de cancelamento.
Por outro lado, aumentou-se o prazo para retorno sobre a demanda do consumidor (de 5 dias úteis para solução para 7 dias corridos para resposta). Além disso, o Decreto anterior, ao contrário do novo, diferenciava a prestação de informações (que deveria ser imediata) da solução da demanda (5 dias úteis). Estaria, então, o acesso à informação condicionado ao novo e maior prazo?
Quanto à ‘proteção’, pelo menos dos dados, o Decreto mantém a lógica anterior de proibir o condicionamento ao fornecimento de dados do consumidor e menciona a existência e incidência da LGPD. Mais uma vez a nova regulamentação parece, contudo, ter perdido uma oportunidade de ampliar a proteção do consumidor: qualquer um que já acessou um SAC teve que fornecer, no mínimo, o número de CPF para ser atendido (sim, trata-se de um dado).
Além disso, partindo-se da premissa das diferentes funções contemporâneas da Responsabilidade Civil, seria de se esperar que a regulamentação do SAC se utilizasse de ferramentas de accountability promovendo a inserção regulatória de “regras de boas práticas que estabeleçam procedimentos, normas de segurança e padrões técnicos”[6] e enfatizasse seu cumprimento, claramente, pela imposição de consequências da não compliance.
É aqui que as verdadeiras iniciativas de ESG se embasam. Enquanto slogans, servem apenas como mensagens publicitárias muitas vezes enganosas ou veladas iniciativas de greenwashing e socialwashing.
Infelizmente a atual legislação consumerista não é suficiente para cobrir os desafios sociais e tecnológicos que são postos com maior complexidade e velocidade. É neste sentido que se deve lamentar as perdas de oportunidades nesta iniciativa regulatória.
A sensação final que se tem da leitura comparada de ambas as regulamentações é de que o novo texto avançou pouco, repetiu muito e perdeu algumas oportunidades essenciais, especialmente em razão dos recentes desdobramentos legislativos, como a Lei do Superendividamento e a LGPD (apenas mencionada), e as discussões recentes sobre bens digitais, tecnologias assistivas, obsolescência programada[7] e sobre o marco legal da inteligência artificial. Aparentemente será papel da iniciativa privada, por meio de reais instrumentos de ESG, impor um padrão mais protetivo, acolhedor e inclusivo de atendimento ao consumidor.
[1] Advogado contratualista. Pós-doutor em Direito e novas tecnologias.
[2] Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2022/decreto/D11034.htm
[3] § 3º Na hipótese de o serviço ofertado não estar disponível para fruição ou contratação nos termos do disposto no caput, o acesso ao SAC poderá ser interrompido, observada a regulamentação dos órgãos ou das entidades reguladoras competentes.
[4] Vide, neste sentido, o famoso precedente do Superior Tribunal de Justiça: REsp. nº 1.737.412-SE que reconheceu que o “O descumprimento de normas municipais e federais que estabelecem parâmetros para a adequada prestação do serviço de atendimento presencial em agências bancárias, gerando a perda do tempo útil do consumidor, é capaz de configurar dano moral de natureza coletiva.”
[5] Neste sentido, vide o excelente estudo de Roberto Altheim que os define como “Já o fator de atribuição (ou nexo de imputação) significa o fundamento (ou a razão de justiça) pela qual se imputa o dever de indenizar um determinado dano injusto a uma certa pessoa.” Disponível em: https://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/5950/roberto_final.pdf?sequence=1&isAllowed=y.
[6] Na explicação de Clemente e Rosenvald, disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-direito-medico-e-bioetica/360773/a-multifuncionalidade-da-responsabilidade-civil.
[7] Sobre o tema, vide: https://glitzgondim.adv.br/wp-content/uploads/2022/02/SCHAEFER-GLITZ-Obsolescencia-programa-IBERC.pdf.